11 de fevereiro de 2009

Desculpe, foi engano

-Alô?!
-Oi. Quem fala?
-Quer falar com quem?
-Quem é?
-Olha, você me ligou. Quer falar com quem?
-Com você.
-E quem é você?
-Não vale a pena dizer. Só queria falar com alguém. Com você.
-Ok, já falou. Até mais.
-Não desl...
O telefone voltou a tocar, olhei: novamente, número não identificado. Não atendi. Precisava terminar de escrever. A chuva forte despencando do lado de fora era um convite tentador ao ócio; o telefone, se esgoelando sem parar, ajudava a tirar o pouco de concentração que me restava. Depois da enésima ligação atendi, contrariadíssima, e não disse nada. Esperei. Ele falava em voz baixa e, dessa vez, parecia meio constrangido pela insistência.
-Desculpa. Você não me conhece, eu não te conheço. Disquei ao acaso, você atendeu. Preciso falar com você, por favor, não desliga. Vou me matar daqui a pouco e preciso conversar com alguém.
Ótimo. Um lunático na minha linha no meio da madrugada. Na melhor das hipóteses, um desocupado. Passada a surpresa do primeiro instante e cumprido o inevitável caminho susto-perplexidade-indignação-só-me-faltava-essa, respondi com meu habitual respeito pelas duas condições:
-Você bebeu?
-Pareço bêbado?
-Ok. Você cheirou? Sem ofensas.
Ele riu.
-Você é sempre assim?
-Assim?
-Assim meio sarcástica. Sem ofensas.
-Ah, não, não. Só quando desconhecidos com idéias suicidas me telefonam no meio da noite. Sabe como é, instinto.
-Você parece ser legal.
-Você fala demais para quem vai se matar.
-Quantos suicidas conhece? Quero dizer, conheceu?
-Nenhum.
-Como pode saber se falam muito ou se falam pouco?
-Como posso saber se vai mesmo se matar ou se é um esquizofrênico a fim de "suicidar" o próprio tédio e a minha noite também?
Silêncio. Do lado de fora, só chuva. Silêncio e chuva, ambos caudalosos. Quase desliguei, ele tornou a falar.
-O que é a vida para você?
-O que é a morte para você?
-Perguntei primeiro.
-Tanta coisa. Nascer, crescer, reproduzir, passando por todos os intermediários. Talvez
-Dá para ser mais clara?
-Comer, beber, beijar, brigar, ter dor de barriga, arrumar um emprego, pagar contas. Cair da goiabeira e ficar com uma cicatriz no joelho, sexo por amor, sexo sem prazer, fazer dieta, sabotar a dieta, tomar uma cerveja gelada num dia quente, tanta coisa, tanto faz, eu não sei. Não me interessa o que é a vida para mim. Interessa o que é a vida para você. É você quem vai se matar.
-Não quero. Vou.
-Ok, é você quem vai se matar.
-Isso.
Silêncio. Para mim ainda parecia trote mas, de repente, começou a me incomodar mesmo a possibilidade de que aquele sujeito fosse realmente se suicidar. Não sei se o incomodo era saldo da proximidade da vida ou da morte dele; o fato é que de repente aquilo ficou muito desconfortável, principalmente porque eu não fazia idéia de quem era o fulano que me escolhera como ouvinte das suas – até prova em contrário- ultimas palavras. Ele parecia tão próximo. Talvez estivesse esperando que eu dissesse “não faça isso” ou coisa parecida, ou algum tipo de discurso sobre como a vida é bela e a morte é negra, mas o insólito da situação tirara de orbita minha capacidade de raciocínio lógico. Ainda assim, foi minha vez de quebrar o gelo.
-E afinal, vai se matar por quê?
-Pensei que não fosse perguntar
-Não ia. Perguntei porque acabou o assunto.
-E por que não desligou?
-Prefere que eu desligue?
-Você é estranha.
-Você ainda não viu nada.
-Não vejo sentido em continuar vivendo.
-Hã?
-Não vejo sentido em continuar vivendo.
-Isso é clichê. Não acredito que vai se matar por um clichê.
-A vida é um clichê.
-Não acredito que vai se matar por um clichê.
-No que você acredita?
-Agora? Acredito que você deve estar doidão.
-Não me mataria se estivesse doidão. Poderia me arrepender depois.
-É, poderia.
-Sua voz é bonita. Você deve ser bonita. Já pensou em se matar?
-A bola da vez é a sua morte, não a minha.
-Pensou, não pensou?
-Sei lá, todo mundo pensa nisso uma vez na vida.
-Por que não se matou?
-Porque não queria morrer de verdade. E acho que você também não quer. Quem quer -morrer não fica de conversa fiada ao telefone.
-Uma contradição.
-Quê?
-A vida. É uma contradição. A gente nunca sabe mesmo quando esta vido e quando já esta morto.
-Não prefere falar de amenidade? Sei lá, filmes. Batman. Você viu o Batman?
-Não gosta de falar disso, não é?
-Estou tentando te distrair. Sei lá, pra você ter uma pré-morte mais legal. Alías, como pretende, desculpe, como vai se matar?
-Você vai saber. Leia nos jornais amanhã.
-Por que me ligou, afinal?
-Precisava falar com alguém. Fico feliz que tenha sido você. Se não fosse me matar, te convidaria para um cinema, ou para uma cerveja. Enfim, fica para a próxima. Vou nessa, se cuide. Obrigado pela conversa.
Ele desligou. Só ele. Eu fiquei subitamente atônita, com o telefone na mão. Não podia retornar a ligação, não podia nada a não ser esperar. Esperar. Esperar. Esperar. A madrugada passou lenta, se arrastando, eu rolando na cama, com o telefone na mão. Sempre com o telefone na mão. No dia seguinte devorei os noticiários e jornais em busca de algum sinal: nada. Uma semana mais tarde encontraram o corpo de um homem boiando no rio, sem marcas de violência ou qualquer outro indicativo de homicídio – segundo as informações, provavelmente o homem se suicidada. Não me contive: chorei. Depois disso a vida quase voltou ao normal. Quase, pois eu não conseguia esquecer o telefonema nem me convencer de que, mesmo que quisesse, eu não poderia ter impedido – cada pessoa segue seu próprio destino: o meu era atender a um telefonema, o dele terminara naquele leito de rio. “Você parece legal”, eu me sentia péssima, de qualquer jeito.
Voltei a escrever e tentei esquecer o episódio, embora volta e meia ele me voltasse a memória. E, numa noite em que as nuvens anunciavam uma chuva tão torrencial quanto a da noite em que ele telefonara, ouvi o toque insistente da campainha. “Algum chato”, pensei, enquanto me encaminhava para a porta e espiava através do olho mágico. Não havia ninguém. Entreabri a porta com cuidado e olhei através da pequena fresta: nada, a não ser um pequeno envelope pardo depositado sobre o batente da porta. Apanhei-o e me tranquei em casa novamente e, ainda de pé junto a entrada, rasguei uma das bordas, verifiquei o conteúdo e senti o coração bater de alivio e de felicidade – como tinha me encontrado? Não importava: eram duas entradas para o cinema, a última sessão daquela noite. E um bilhete: “desculpe, foi engano.”